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O CAÇADOR

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«I am the hunter…». As palavras repetiam-se nos seus pensamentos.   «Eu sou o caçador...». Mas os tempos eram outros e as presas também. Caçava homens. O seu foco eram homens orgulhosos, endurecidos por longos anos de luta numa guerra que parecia não ter fim. Não eram os soldados que lhe interessavam. Perseguia, exclusivamente, as altas patentes, e, neste momento, uma em particular. Este oficial era tão importante que, se conseguisse cumprir a sua missão, poderia, apenas com uma bala, mudar o curso da guerra. Sentiu a frescura do ar da manhã, os primeiros raios de sol começavam a despontar, antecipando a chegada do verão. Ao seu redor podia ver a bela paisagem da outrora gloriosa França, um país tão destroçado por uma guerra inútil e sem sentido, mas que, ainda assim, conseguia manter a sua singularidade e beleza. Os prados, antes verdejantes, estavam rasgados pelas crateras das bombas, e por trincheiras cavadas à pressa por um exército que tentara, por todos os meios, deter o avanço d

DESPEDIDA

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- Já não me lembrava de te ver tão em paz. Quantos foram os anos do teu sofrimento, a lutar  contra esse cancro que te levou de mim? Perdi a conta. Agora olho para ti e vejo-te como que a dormir um sono sossegado, como fazias antes da doença, como não te via fazer há tanto tempo. Este caixão é a tua última cama, e está tão distante do nosso quarto, das nossas noites de amor, da nossa vida que parecia não ter fim e que acabou demasiado cedo.  - Ele está num sítio bom, já não sofre, e está feliz. - Olá, Diogo, há muito tempo que não te via. - Olá, Diana. Há muito tempo, mesmo, mas tinha de cá vir para te ver. - Fizeste bem. É sempre boa a companhia de uma cara amiga. - Não te preocupes pelo Carlos, ele passou um mau bocado, mas agora está bem. - Ó Diogo, tu sabes que eu não sou de religiões. - Mas eu não te estou a falar de religião. A Natureza é assim. - Eu sei que sempre tiveste inclinação para o sobrenatural, mas agora não me ajudas com essas conversas. O Carlos já não

Texto da sessão de 07/02/2024 da "A Velha Escrita"

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Estava um nevoeiro de cortar à faca. não via um palmo à frente do nariz. Não é que o nevoeiro o incomodasse, era mais o não conseguir ver. Já de si era difícil ver o caminho à noite, mas assim, era um tormento. Dava um passo de cada vez, olhando atentamente onde punha os pés. Costumava dizer que conhecia o bosque como a palma da mão, mas agora parecia-lhe que a mão afinal tinha sido sempre difusa. Era uma maldita vida, de manhã à noite, de um lado para o outro, naquele caminho. Curiosamente, sempre achara que conhecia cada curva, cada pedra daquele trilho, mas, na primeira vez que caiu aquele nevoeiro de cortar à faca, todo o seu conhecimento parecia que se tinha esfumado. “Maldita expressão”, pensou. Se fosse verdadeira, estava resolvido, a faca estava ao cinto e até se considerava bastante exímio no seu manuseamento. Como é que iria conseguir trabalhar assim? O dia tinha sido frouxo e ele apostara na noite para o remediar. Era uma sexta-feira, costumava ser rentável.   Ouviu vo

Texto da sessão de 10/01/2024 da "A Velha Escrita"

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O meu amigo Joaquim é um despistado, sempre perdido em pensamentos, mas não deixa de ser bem disposto e boa companhia. Garantidamente, quando está por perto, as gargalhadas são uma constante. No entanto, uma das características mais definidores do Joaquim é a sua capacidade de estar sempre atrasado, e de arranjar sempre as mais disparatadas desculpas para se justificar, não dando “o braço a torcer” e conseguindo sempre levar a sua avante. Leva o atraso ao ponto de o tornar numa arte. Parece que, para ele, o atraso é quase uma obrigação, uma demanda do maior número de atrasos possíveis, como se procurasse colocar o seu nome no livro do homem da cerveja, o Guiness. Mas o atraso do Joaquim não está limitado a questões cronológicas de horas marcadas, é muito mais do que isso, vai ao ponto de dias e mesmo meses de atraso. Lembro-me de o convidar para o meu casamento e de receber uma mensagem a perguntar onde era a cerimónia, estava eu a embarcar no avião para a lua-de-mel. Já não se

A ALEG(O)RIA DO CLIMA

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Certo dia Espécie Humana decidiu experimentar a sua nova snowboard. O tempo estava agradável, o ar fresco e limpo, e os montes cheios de neve. Para onde olhasse tinha lindas colinas onde podia deslizar alegremente e sem preocupações. Assim, escolheu uma montanha generosa, coberta de neve branca, à qual escalou, com alguma dificuldade, até atingir o seu topo. Tudo estava a favor da sua vontade. Para além do céu limpo e do ar fresco, soprava apenas uma leve brisa que não descia do ponto de agradável. Pegou na sua snowboard, escolheu o lado mais solarengo da montanha, que, por sinal, parecia o mais agradável, e começou a deslizar.   A princípio tudo corria bem, a inclinação não era muita e a velocidade parecia constante. Espécie Humana ficou muito contente com o seu progresso, a vida corria-lhe bem, a descida era confortável e cada vez mais agradável. De quando em vez tinha um ligeiro solavanco, quando se cruzava com alguma planta, ou mesmo animal, que se encontrava envolvido na neve, mas

Texto da sessão de 11/10/2023 da "A Velha Escrita"

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Mais uma manhã, mais uma semana que começava. O tempo estava propício para uma caminhada pela cidade, o observatório não era longe e o exercício fazia-lhe falta. Estava animado, tinha reunido toda a sua coragem durante o fim de semana e, por estes dias, iria conseguir terminar aquela conversa, aquela que não seguira o rumo que ele esperava. A sua incapacidade de ultrapassar o receio da rejeição ultrapassava a sua capacidade para seguir em frente com o seu intento. Mas não era a hora nem o momento de pensar nesse assunto. De passada larga, galgou a via pedonal que acompanhava as paragens do hoverbus. Os edifícios gigantes que o circundavam criavam um mundo de luz e sombra que lhe fazia sempre lembrar a pitoresca luta que decorria dentro dele. Sentia-se um idiota, certamente os receios que tinha eram infundados, apenas reflexos da timidez que sempre o acompanhou. Por todo o lado pairavam anúncios holográficos da nova grande descoberta que viera agora a publico. Devido ao seu trabalho, a

ROUPA LAVADA E FIM DE TARDE

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"A vida é dura, mas é boa". As palavras da avó enchiam-lhe a mente. Perdera a conta às vezes que a ouvira dizer esta curta frase. De pequena, apenas sorria quando o rosto enrugado e envelhecido da avó estava frente ao seu e lhe dizia, de quando em vez, "a vida, minha pequena, é dura, mas é boa". Desses tempos, o que recordava, o que lhe ficara impresso na mente como uma fotografia, era o brilho dos olhos dela, um sorriso tão verdadeiro, tão cheio de ternura e genuína felicidade, como ela nunca vira em mais ninguém. Na casa da avó, naquela aldeia perdida no monte, conhecera apenas a alegria de correr livremente, de ficar na varanda a ver o pôr-do-sol, de colher as flores silvestres e de, com elas, fazer coroas para brincar às princesas.   Estava de volta, depois de tantos anos, depois da escola, da universidade, dos amores e desamores, do trabalho, dos filhos, dos dias que passam a correr. Reencontrava o sossego, a vida que passa devagar, o cheiro do campo e do monte