O MURO

O muro estendia-se até onde alcançava a vista, tanto em altura como em comprimento. Dizia-se que não tinha fim, que se estendia pela terra, sobre vales e montanhas, a toda a extensão do mundo. O seu topo era inalcançável, constava-se, e que roçava o topo do céu. Do outro lado? Do outro lado tinha o nada. Pelo menos era
este o conhecimento que passava de pais para filhos. Todos sabiam que do outro lado não tinha nada, sabiam porque lhes tinha sido dito pelos seus pais e a eles pelos pais deles, e assim sucessivamente desde que havia memória. Mas nem todos aceitavam plenamente o muro. Havia muitos que o questionavam. O que fazia ali? Quem o construíra? Porquê? Perguntas às quais a resposta sempre fora “sempre aí esteve e sempre estará, o muro é o nada e nada é o muro”. Perguntas que acabavam por se apagar em bocas que envelheciam e nascer em bocas jovens, e que, com o passar do tempo, acabavam por se apagar, num eterno ciclo de perguntas sem resposta.

O muro era feito de pedra. Enormes blocos cuidadosamente colocados uns sobre os outros e meticulosamente encaixados teciam uma malha de rocha tão perfeita que nenhum pedreiro alguma vez fora capaz de a replicar. O muro não tinha fissuras, nem falhas, pelo menos nenhuma que alguma vez constasse na memória de alguém, nem mesmo a memória de alguém ter dito a alguém da existência de fosse o que fosse no muro para além da perfeição da sua construção. A sobreposição dos blocos que o compunham era tão exata que se tornava impossível de saber qual a sua espessura. Algumas tentativas, algures no passado, tinham sido feitas para o perfurar, mas, desses intentos, apenas sobravam algumas marcas na rocha e restos de ferramentas partidas. Aldeias tinham nascido e morrido junto ao muro, gerações sobre gerações tinham vivido ao lado dele, e o tempo passara inexoravelmente, mas sem nunca deixar marcas nas rochas que permaneciam imóveis no seu lugar.


Todos os dias dava um passeio junto ao muro. Gostava de o fazer deixando uma mão deslizar sobre a rocha. Sentia a porosidade das pedras e a perfeição dos cortes. Não encontrara nunca nenhuma parte que estivesse longe de ser perfeita. Todas as rochas tinham a mesma dimensão, todas estavam cortadas e polidas da mesma forma. Os blocos estavam colocados intercaladamente, uns sobre os outros, como enormes escadas que subiam para o desconhecido. Todos os dias admirava o muro e todos os dias sonhava com fazer isso mesmo, subir até ao desconhecido. Ao contrário daqueles que apenas perguntavam o que estaria do outro lado, ele queria ver com os próprios olhos. Não se importava de não voltar, o que procurava era o conhecimento, não a glória de o ter. Partilhar o conhecimento ou ser conhecido por todos como aquele que viu o outro lado não eram variáveis incluídas nos seus desejos. Sabia que não era o primeiro a ter estes pensamentos, nem que seria o último. Sabia também que, se levasse a cabo o seu desejo de escalar o muro, não seria o primeiro a fazê-lo, esperava era ser o primeiro a fazê-lo com sucesso, algo que nunca antes acontecera. Na verdade, as tentativas de escalar o muro tinham-se limitado a uma, pelo menos naquela parte do mundo. Ninguém sabia de que tamanho era o mundo, nem se tinha fim, nem mesmo se havia muitas mais aldeias para além das que eram conhecidas por ali. Na verdade, também a curiosidade de saber estas coisas era pouca, ou mesmo nula. Assim, ele partia do princípio que mais ninguém, em nenhuma parte do mundo, tinha tentado escalar o muro, exceto aquele caso que viera a conhecer uns anos antes. Algumas gerações atrás, como lhe haviam contado os anciãos da aldeia, um jovem como ele, forte e determinado, tinha decidido escalar o muro. Embora todos lhe tivessem dito que era uma loucura e que era impossível, pois não se conseguia ver o topo do muro, nem mesmo saber se o muro tinha topo, ninguém o conseguiu demover da sua ideia. A escalada tinha sido iniciada no primeiro dia de Primavera e, durante algum tempo, os aldeões tinham-se juntado, todos os dias, junto ao muro, para o verem escalar. Quando deixaram de o ver, por já se encontrar demasiado alto, deixaram de se preocupar e, aos poucos, o caso começou a cair no esquecimento, até que, alguns meses depois, o corpo do jovem apareceu junto ao muro, estilhaçado no chão. Os anciãos da aldeia analisaram o corpo, agora quase irreconhecível devido à estrema magreza que apresentava, e tinham concluído que a causa da morte não fora a queda de grande altura, que lhe tinha partido todos os ossos do corpo, mas a fome. O mais provável era que ele tinha morrido durante a longa queda que dera. Este caso, que tinha esmorecido a vontade de escalar o muro de todos aqueles que ponderavam essa hipótese, só lhe dava novo alento. Não só tinha o muro para vencer, como iria ter sucesso onde outros tinham falhado.

Em posse de todos os dados que a memória das gerações passadas lhe davam, preparou-se, física e mentalmente, para a tarefa que o esperava. Assim como fora feito gerações atrás, também ele iniciou a subida no primeiro dia de Primavera. Tinha encontrado o local de onde o seu predecessor tinha iniciado a escalada e decidira fazê-lo no mesmo sítio, não só num desafio directo ao seu insucesso, como também para aproveitar as cavilhas de metal que ele tinha deixado encaixadas nas rochas. Mais tarde ou mais cedo, irremediavelmente, as cavilhas iriam-lhe mostrar até que ponto ele tinha chegado... ou então, saberia que o seu insucesso tinha sido duplamente incompleto, ao não atingir o topo do muro e ao não subir mais alto que o primeiro escalador.
Os primeiros dias foram os mais difíceis. A passagem de uma vida em plano horizontal para plano vertical tinha as suas consequências. A escalada era facilitada pela herança do malogrado escalador mas, mesmo assim, o esforço era considerável. As primeiras noites foram mal dormidas, mas o tempo e a rotina trouxeram a habituação. Agora vivia o dia-a-dia verticalmente, dormindo, comendo e realizando todas as outras funções corporais nessa perspetiva. O mundo tornara-se apenas uma mancha deixada para trás, agora só existia ele e o muro. A noção do tempo foi sendo perdida lentamente. Há quanto tempo estava a escalar? Semanas? Meses? Não fazia a mínima ideia. Não sabia se trepava muito ou pouco, ou se trepava mais nuns dias no que noutros. Tentou contar as pedras que ia deixando para trás para comparar os dias, mas acabava sempre por se perder nos números e nunca conseguir chegar a nenhuma conclusão.

O dia chegou em que as cavilhas antigas terminavam. Mais nenhum vestígio fosse do que fosse se encontrava naquele ponto do muro, apenas uma última cavilha a simbolizar o último fôlego de um desconhecido que ele aprendera a respeitar cada vez mais com o passar dos dias. Durante uns minutos repousou, apoiado nesta última cavilha, como que a despedir-se de um companheiro invisível que o tivesse acompanhado na subida até aquele ponto. Colocando habilmente uma nova cavilha, reiniciou a subida. Não sabia quanto mais teria que trepar, o topo ainda estava invisível. A verdade era que o céu estava coberto por uma neblina que o impedia, já há bastantes dias, de ver para além de uma curta distância, para qualquer um dos lados. Assim, decidiu manter o ritmo de escalada em que tinha ali chegado, sem se preocupar com a distância que o separaria do topo do muro.

Dias e noites passaram-se, sempre dentro da mesma monotonia. Apesar da sua gestão de esforço e da adaptação à vida na vertical, que agora se tornara quase natural, o cansaço começava a entranhar no corpo. Receava ter o mesmo fim do seu predecessor. Sempre que esses pensamentos afloravam à sua mente, esforçava-se por afastá-los concentrando-se na sua missão.

Não sabia quanto tempo tinha passado desde que iniciara a subida, mas isso e tudo o resto tornou-se irrelevante, no momento em que colocou a mão no muro, após se içar para uma cavilha, e não sentiu a familiar planura vertical, mas sim um arredondar para dentro. Com o ânimo redobrado, colocou mais uma cavilha e, com uma força que já não sabia ter em si, içou-se lançando o corpo contra o muro. Contrariamente ao habitual, não encontrou a resistência da rocha. Tinha encontrado o topo? Era ali que terminava o muro? Iria finalmente ver o que o esperava do outro lado? Estes pensamentos cruzaram-lhe a mente numa fração de segundos, sendo de imediato substituídos pelo reconhecimento que, na sua ânsia de atingir o topo do muro, se tinha içado com tanta força que se tinha desequilibrado e estava a tombar para o outro lado do muro. Sentiu uma superfície arredondada sobe si, o topo do muro era em curva e era muito menos espesso do que alguma vez pensara. Não conseguindo segurar o seu ímpeto, tombou de cabeça para o outro lado. Sentiu um aperto no coração e aguardou por se sentir a cair para um final trágico e certo, mas, no lugar disso, sentiu... nada! Sentia-se como se estivesse parado. No entanto, debaixo dos pés não tinha a característica sensação do chão, nem sabia muito bem para que lado era “baixo”. Olhou em volta. Ia jurar que, no momento em que atingira o topo do muro, o dia já tinha dado lugar à noite. No entanto, à sua volta podia ver tudo branco. Rodou para ver o que o circundava e viu nada, tudo era branco, já nem o muro via. Não conseguia sequer saber se tinha rodado, pois não tinha nenhum ponto de referência. Não podia afirmar que não via nada, porque ele via, só que o que via era nada. Estava no meio de nada e só via nada. Agora entendia o que fora dito de geração em geração. “Do outro lado do muro só há nada”. Sempre pensara que o que era dito era que do outro lado do muro não havia nada, a inexistência de coisa alguma, mas estivera sempre enganado. Do outro lado do muro havia o nada, o completo e inexorável nada... e era no nada que ele estava e lá iria permanecer. Estranhamente, sentiu-se a aceitar o nada com facilidade, sentia-se a diluir, a passar a ser parte do nada... Mas ele não queria ser nada, ele não era parte do nada. Ele era algo! Agora não poderia ser dito que do outro lado do muro só tinha nada, porque ele estava lá! O muro já não era o nada, pois ele ocupava o nada! Então, se o muro já não era o nada, o nada também já não era o muro...

Voltou a sentir o Sol e o chão, voltou a sentir o vento e a chuva... voltou a sentir, mas de forma diferente… tudo era diferente, nada era o mesmo, pois ele agora era o muro.


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